A MORTE E OUTRAS COISAS
Era outrora que nos davam um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola. O mapa imaginário, onde não vinha a nossa idade. A poeta – Natália! – bem o sabia. Mas esse outro tempo definhou como definharam outros tempos e uma espécie de esperança – embrulhada em nostalgias e profundas ingenuidades – foi crescendo em nós e pensámos que ainda um outro novo tempo podia mesmo construir-se e, se não pudesse construir-se era a nós que nos cabia e alguma construção cá se faria.
Depois criámos momentos trôpegos. Deram-nos mesmo a honra de manequins. E vieram uns porem-nos trajos pobres e outros a pedirem-nos os sapatos, que é como quem diz, o melhor dos nossos esforços.
Ensinaram-nos a criar crianças crédulas. Agitadas, hiperativas ou perdidas neste nosso labirinto da saudade. A essas ensinaram logo a matar, no jogo da consola, na televisão dos desanimados, nas séries, na brutal escolha dos filmes e das séries – e até nos telejornais que são os mais compridos da Europa e os mais curtos em pedagogia, sensibilidade, cidadania, formação. Uma infância à hora da morte a todas as horas.
Deram-nos o prémio de ser assim. Como sempre, tem-se idade para ir para a frente da batalha, agora chamam-lhe missões de paz onde os nossos jovens mobilizados matam com armas mais apuradas. E mata-se mais na rodovia, nos estádios, nas desesperadas reformas roubadas e nos empregos cancelados. E nos hospitais onde a política de contenção retirou profissionais e recursos.
Mata-se ainda por convite: aqui tem o seu desespero, morra longe.
Graças à Troika e ao trio de bancas-rotas – o tal Silva, o tal Coelho, o tal Portas – foram muitos os que puseram termo à vida. Conheço famílias por eles desfeitas, novos mendigos dessa austeridade que segundo eles nos faria bem, vítimas de uma guerra que não era mundial, nem imperial, nem colonial, mas fecal como todas as guerras. Chamavam-lhe o regresso aos mercados, que é o que se diz ao gado quando sai do campo para o abate.
Era outrora que nos davam bilhetes para o céu e cabeleiras para os crânios ermos. E a capa de um Evangelho para cobrir pedofilias descobertas. E davam-nos campas, covas, para as muitas mortes a que não temos direito.
Era outrora que nos prendiam e selavam as línguas ávidas. E tínhamos ditadores de província a suspirar pelas províncias, umas ultramarinas outras intestinas mas quase sempre órfãs. E tínhamos a emigração, a broa negra, a sardinha para três. E pés descalços. E nem uma letra junta a outra reconhecíamos. Era outrora, a tumba onde a ignorância se enterrava com a impunidade. Isto até ao cravo preso à cabeça e à cabeça presa à cintura. E depois a desilusão. A manjedoura do que ainda se arranja temperado com sal de lágrimas. E agora a morte anunciada votada pelo parlamento é vetada. O que é normal, pois há sempre um momento para a morte – e não temos direito a ele.
Alexandre Honrado
Historiador